janeiro 23, 2014

O verbo


I can take so much 'til I've had enough, cause I’m only human.

São apenas cinco letras que formam a tal palavra. A que me aflige por anos e assombra nos cantos mais escuros desse quarto. A palavra que continua a martelar em cada texto, em cada sonho, em cada suspiro pesaroso. Porque pesa tanto moço, pesa muito. As costas doem, as pernas bambeiam, os braços despencam. O corpo começa a caminhar levando uma alma que pesa toneladas. Lotada de vazios. Entupida de sonhos. Exagerando nas vontades. Há tanto para se fazer, mas há tanto para se esperar também. Não dá pra simplesmente dizer: "ok, tô indo, tranca a porta da frente e não precisa destrancar as dos fundos porque não volto mais". Porque eu sempre volto depois das onze com aquela vontade de errar o ponto, trocar a quadra, mudar a cidade, estado, país. Ei, motorista, me deixa na rodoviária hoje que já não moro mais aqui. A passagem é para qualquer lugar longe, a poltrona tem de ser na janela porque preciso dizer adeus, deixar que as minhas lágrimas lavem um pouco esse vidro manchado que já correu tantas estradas, que já presenciou tantas despedidas e reencontros. Que ele presencie o meu reencontro, não vai ter ninguém do lado de fora, pois estarei me encontrando comigo. Tem uma parte minha perdida por aí que faz falta e pesa. Ah, moço, é isso aí que anda pesando. A alma tá querendo se dividir, mas não me encontro. Não tem como dividir a minha carga só comigo, falta uma parte. Falta a minha outra eu que ficou em outro lugar, que eu tenho certeza que não é aqui. 
Já procurei em tantas esquinas, quadras e ruas. Mergulhei em tantas páginas de mapas e histórias para ver se encontrava alguma pista, foram tantas que acho que me dividi ainda mais. Há uma parte de mim em cada história lida, em cada país estudado, em cada pessoa que passou. Sobrou só esse casco que levo durante os dias, procurando força nesse ou noutro livro qualquer, só mais algumas páginas, só mais alguns anos, só mais um pouquinho... E o pouquinho pesa tanto. E o pouquinho não passa nunca. O tempo tem me pregado peças, quando penso que estou perto ele me faz retornar. Motorista, ei, não volta! O caminho é mais para o norte mesmo, o sul já cansou de mim. Talvez eu já tenha cansado de procurar e deseje desesperadamente encontrar. Basta de ser casco, quero voltar a reintegrar-me com cada parte deixada. Me ajuda moço, me dá uma carona até uma cidade vizinha daqui que uma parte da minha infância ficou grudada com umas pessoas que estão longe e agora deu saudade. Uma parte da minha adolescência foi compartilhada com uns amigos que se perderam nesses estados por aí, me deixa pelo menos dizer um olá. Sei que já faz tanto tempo de algumas coisas, talvez nem se lembrem mais. A gente vai deixando de lembrar da gente. Mas eu não me esqueço. Não consigo não sentir a falta que dá, assim, numa noite difícil, de ser inteira. Falta de conseguir ser completamente alguém sem precisar esconder certas lacunas, medos, e escolhas. Completa seria como gritar em um microfone que basta de ser assim, uma eu entre quatro paredes e um bloco de notas. Ser inteira é ser completamente minha. Entre mais de quatro paredes, e bem menos de quatro pessoas. Eu só comigo. 
Maldita palavra. Tão pequena, tão simples, mas guarda tanto de mim ali. Meus pedaços só se encaixarão depois dessa palavra, a ação do verbo precisa ser feita. Dessa vez é ação mesmo, não é fenômeno da natureza nem estado. Porém o sujeito está incompleto, é complicado completar ações sendo assim tão desconexa. Minhas ações não se encaixam. Eu não me encaixo mais. E é tão difícil moço. Deixa eu te contar que hoje chorei como uma criança, mesmo tendo proibido fazer meu coração parar de chorar depois daquela tatuagem, hoje deixei que chorasse. E chorou tanto. Mesmo parecendo que já não havia o que esvaziar, estou aqui, tirando cada pedacinho que ainda me resta. Tô me desfazendo em palavras porque não há mais peças. Estou me desintegrando a cada frase. Meus dedos não querem se encaixar com essa maçaneta de estilo antigo, meus pés não suportam mais o piso avermelhado, meus olhos ardem à luz dessas paredes. Meu corpo está em uma luta constante entre o querer e o precisar. Não quero moço, incomoda muito, mas é preciso. Não há solução próxima. Não tem luz no fim do túnel ainda. Há um farol baixo que às vezes falha, dá uma esperança, mas é tão pouco que logo tudo volta a pesar. A gente tenta se enganar, dizendo que é exagero, nem é tão ruim, logo passa. Aquela maldita expressão "você acostuma". Não acostuma nunca. Não passa nunca. O pouquinho tá demorando muito. Eu tô me perdendo aqui. E se eu não resistir mais esse ano? Ainda faltam pelo menos dois. 
Não, não me importo que fumes. Acende esse cigarro aqui nessa rua. Tá vendo aquela esquina ali? Tem meu pé e o de alguém plantado e me causa boas lembranças. Essa árvore também. Ali, viu aquela casa com um quintal grande? Era a diversão da minha infância. Logo pra cima tem uma igreja que eu nunca fui, mas vivia na frente fazendo bagunça... Joga as cinzas em cada lembrança dessa, não para que apaguem, mas que passem. Porque as cinzas são leves e se vão com o vento, talvez elas levem essas memórias e me leve também. O que? Você ainda não entendeu do que eu tô falando? Desculpa, às vezes não percebo que atropelo palavras. É tanta urgência que a gente sempre engole uma parte ou outra. Tô falando de mim moço, tô falando das memórias dessa vida aqui que já me sufocam, tô falando da palavra. O verbo é fugir. Conjuga comigo. 

2014 chegou com vontade de ir embora. Vamos?

Um comentário:

Unknown disse...

Foi como se tu tivesse tirado palavras da minha boca. É isso que eu tô sentindo e nem sei explicar, mas tu soube então é por isso que tô comentando, obrigada por me ajudar a entender esse sentimentozinho (ou melhor verbo) que martela na minha cabeça :)
Bjo