maio 06, 2013

Lar, doce lar.

"Você não vai ficar um pouco?"

Moro aqui mesmo, sim senhor. Não se estranhe não, depois de um tempo a gente acostuma. Moro aqui há alguns anos, não vale a pena ser exata porque exatas nunca foi a minha área de maior carinho. Gosto mesmo é dessa coisa toda com palavras, sabe? De se perder num texto e outro. Mergulhar em um mundo que não é meu só por um dia, uma tarde, uma madrugada inteira. Porque já dizia uns: "a realidade é triste". E a que eu crio entre essas milhares de páginas me traz a alegria que é viver. Não te convidarei para entrar em minha casa, porque há riscos demais com visitas. Portanto fique aí que te conto pela janela dos olhos como são as coisas. Há terremotos frequentes, mas a gente acostuma com o tempo. De vez em quando os intervalos entre eles diminui, derrubando estantes, quadros e louças. Quebra sempre uma coisa ou outra, mas tem vezes que compensa. Porque ao dar uma espiadinha na janela do olhar no que está causando tudo isso, vejo ali umas palavras minhas. E o terremoto se torna tão bonito quanto qualquer canção. Os olhos sorriem para mim porque sabem que estou aqui a sorrir também. E a minha casa pulsa a cada frase.
Entretanto, as paredes estão tão firmes e calmas que até me entristece. Não há mais terremotos frequentes. Talvez tenha relação com o último. Ah, o último... Moço, talvez não seja educado de minha parte te dizer essas coisas, mas a última vez quase fui despejada. Na verdade tem um documento que chegara pelos olhos dias atrás, juntamente com o último grande terremoto. Foi difícil aguentar as pulsações, os olhos já não sorriam e houve um grande tsunami. A água salgada escorria e manchava minhas paredes. Veja só, ainda está marcada. Quando tentei descobrir o motivo me vi refletida com um grande X vermelho. Tentei apagar, rasgar, mas o X não saía de mim. Então veio o documento. Ando tentando ignorar mas é difícil. Todos os dias fazem questão de me lembrar que já está na hora de trocar o morador, mas eu não quero sair. Conversas não funcionam, os ouvidos trancaram as portas para minhas palavras. Os olhos se fecham quando tento encontrá-los. As mãos gélidas já não rabiscam saudades minhas. 
Antes que tire conclusões precipitadas, fui uma boa moradora. Talvez deixasse a casa por limpar algumas semanas, ou me escondesse dos olhos por uns dias, mas eu sempre voltava. Porque a casa ia ficando tão pequenininha e fraca que dava pena. Os dias de ausência nunca foram fáceis para mim também, me via mergulhada nas próprias lágrimas, engolida pelas minhas palavras. Tentava me livrar daqui, inventar fugas que futuramente só me deixariam com vontade de voltar. Então ficava mais um pouco só para ouvir a voz que os ouvidos traziam para me convencer, e convenciam. As paredes tremiam, o terremoto seguia, mas era tão bonito. As mãos desenhavam meu rosto num canto de uma folha, os olhos me deixavam ver essas coisas. Sempre traziam para mim esses rabiscos que pendurava como quadros na parede. Veja, aqui estão alguns. Sim, agora há manchas, me desculpe. Também não sei o que aconteceu, guardei com cuidado cada um, e hoje mostram traços finos em papéis manchados. O tempo está levando eles de mim. O tempo está me levando para longe daqui. 
Há algumas rachaduras no canto esquerdo, venha ver. Não me orgulho disso. Na verdade já passei inúmeras noites imaginando quando acontecera. O último terremoto talvez tenha relação, mas não me lembro de ter sido tão descuidada. Para ser sincera, nos últimos dias tentei ao máximo cuidar da casa da melhor maneira possível. Toda noite vinha e tirava o pó de cada móvel, limpava cada canto, e não por obrigação, mas por amor. Porque a gente deve amar o que tem, não é? E essa casa sempre foi meu grande amor. Eu amo essa vizinhança inteira. Amo os ouvidos que trazem músicas extremamente altas nas noites de sábado, os olhos também, mesmo que trazendo visões desnecessárias de outras garotas, as mãos mesmo segurando as de outra, faziam os meus melhores quadros... Não tem como simplesmente me mudar. Cada tijolinho tem um pouco de mim. Pelo menos sempre acreditei que meus passos ficariam marcados em cada rua, só para o cara lá de cima relembrar quando alguém novo chegasse. Mas nem o cara lá de cima me deixa entrar. Tentei visitá-lo tantas vezes, hoje há uma placa proibindo minhas visitas. 
O meu tempo acabou. Os terremotos também. Esse que ocorre de segundo á segundo só trazem os ventos que nos percorre. Está frio. Sei que o inverno está próximo e tenho medo de não poder ficar mais nem essa estação. Odeio invernos, mas o último fora tão bonito que tinha esperanças de um novo sorrir para mim. Mas como disse, os olhos se fecharam. Não há música. Não há rabiscos. Não há lembranças passeando na rua de cima. Não tem mais espaço aqui. Vejo só essas malas, já tem alguém querendo entrar. Mas sabe moço, dói tanto essa coisa de adeus. Não quero voltar para a minha casinha de verdade, aquela que tem inúmeros terremotos difíceis para lidar. Aquela que vive entre palavras, escritas e impressas. Aquela que só sabe sonhar com a casa daqui. Aquela que pulsa numa frequência diferente a cada semana, porque tenta acompanhar esse ritmo. Mas vê como é difícil? As batidas nunca se repetem, e aí ela fica confusa. Não dá para viver feliz assim, por isso mudei pra cá. Aqui tudo era tão meu que até as janelas de cima traziam o cheiro do meu perfume vez ou outra. Dá pra acreditar, moço? Até meu cheiro! E agora estou aqui, lutando contra os dias para conseguir ficar só mais um pouquinho. 
Eu, que já não moro mais no teu coração, quero deixar gravado nessa entrevista que a minha vontade de ficar é eterna. Que as minhas pegadas marquem suas células, e que a cada nova moradora, os olhos revejam minhas palavras, os ouvidos reouçam minhas músicas e as mãos rabisquem-me. E que o cara lá de cima, o chefe, jamais deixe que se apague todas as nossas lembranças. Porque por mais distante que estejamos, estarei para sempre aqui. Me deixei presa em você para que leve-me sempre consigo. Agora já vou indo, sei que está ocupado e tem gente querendo entrar. Tem um bilhete rabiscado em cima da mesinha, deixei para a próxima. Pedi que não tirasse os quadros do lugar, porque enquanto escorro pelos teus olhos quero vê-los pela última vez. Nesse último terremoto, a causa fui eu. E hoje saio de você com uma vontade tão grande de adiar a partida para o próximo ônibus. Tomara que atrase pelo menos meia hora, pois assim poderei te admirar pela uma última vez. 
Já sinto falta de casa.  

Esse negócio de mudança nunca é fácil. O adeus sempre rende mais do que deveria. Dessa vez foi em 6 parágrafos que não acabam aí. 

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