março 10, 2013

Mensagem de um adeus



O tumulto piorou depois que saíra, te empurrei entre a multidão para que conseguisse escapar pela porta estreita e senti um alívio quando te vi sendo puxada por alguns homens lá fora. Talvez sejam bombeiros ou apenas amigos, mas te levaram para longe do inferno que estamos aqui. A fumaça aumentou, tudo parece rodar e os gritos ensurdecem. Só não ensurdecem meu coração, que luta para ficar calminho tentando ouvir o som da tua risada algumas horas atrás, quando te chamei para vir aqui. Sim, fui eu. Pode parecer bobeira agora, você pode dizer que veio porque quis, mas fui eu quem estive lá na sua casa mais cedo te convidando para mais uma noite. E depois das quatro, quando fosse te levar para casa, te roubaria um beijo e entregaria um presente. Só para celebrar a nossa volta depois da briga da semana passada. O que eu quase te roubei, na verdade, foi sua vida. O teu último suspiro. Mas te ouvi gritando lá fora meu nome, pedindo para que os outros me tirassem daqui. E me fez sorrir, porque soube que ainda viveria muitos e muitos anos depois de toda essa confusão. Confusão essa que poderia esperar alguns dias, porque hoje te entregaria uma flor que comprei, tá no porta-luvas, caso ainda a queira. É uma rosa branca, porque sei como acha bonito essas flores que transmitem paz. Queria te entregar ela dizendo que a única paz que eu preciso é a que encontro no teu sorriso.
Tá escuro, a fumaça começou a descer um pouco e mesmo estando quase deitado consigo sentir seu cheiro forte. Vejo as pessoas duplicadas, talvez seja um dos efeitos do inferno. Várias estão caídas no chão, tento pensar que apenas tentam fugir do cheiro. Mas a verdade vem à tona quando alguém passa por cima delas sem se importar, e não vejo reação dos corpos estirados. Não culpo ninguém por não puxar essas pessoas e levarem para fora, mal estão conseguindo levar as próprias pernas para algum lugar. A gente sempre se coloca em primeiro lugar nessas horas, mas hoje coloquei você. Porque minha vida já não teria importância sem ouvir sua risada estranha depois de uma das minhas piadas ruins. Você dizia que eram péssimas, mas sempre acabava rindo. A vida não teria o brilho que vejo dentro dos teus olhos grandes castanhos, que você sempre dizia que não gostava muito por não serem verdes ou azuis. São lindos, à propósito. As noites seriam frias sem ter você do meu lado vez ou outra, deitada no meu peito e comentando vez em quando "como teu coração tá rápido" ou apenas rindo de uma pinta ou outra que tenho. E mesmos seus pés estarem sempre frios, não haveria frio maior do que aquele em um mundo sem você. 
Ouço barulhos na parede, já não sei se são devaneios ou realmente algo está martelando do lado de fora. As batidas fazem o som daquela nossa música, aquela que tocou na hora que viera me contar que passara na prova. A música fica tão alta que já não ouço gritos, não há pessoas, tem você e eu naquela cachoeira que fomos ano passado. O ar é fresco, a água respinga nos nossos pés e sinto-me invadido por uma paz gigantesca. Me dá vontade de chorar. Pego na sua mão pela última vez, sinto o calor da tua pele, te olho nos olhos tentando encontrar neles um abrigo, teus lábios se aproximam dos meus e pela última vez sinto teu gosto. Uma lágrima cai, o barulho volta a ser de marteladas frenéticas, gritos e choros. Não tem cachoeira respigando nos meus pés, o que molha o chão são as gotas do teto já queimando, e o ar fresco se tornara negro e queima a cada inalada. As lágrimas já tomam conta de mim, que tentei ser forte a maior parte do tempo. Eu, que sempre me esquivei dessas coisas de sentimento, hoje queria te dizer todos os "eu te amo" que deixei guardado, chorar em cada briga e aceitar teus cafunés mesmo quando estivesse estressado por algo da faculdade ou do trabalho. Queria te pegar nos braços todos os dias, ter bagunçado seu cabelo numa forma de carinho mais vezes, ter visto aquela sua covinha que aparecia sempre que sorria quando estava sem graça. 
Não consigo me mover, minha cabeça gira e minhas pernas não querem se levantar. Está tudo quietinho, ouço apenas minha respiração lenta e dificultosa aqui dentro, tá tudo tão escuro... Onde foi parar você? Estico os braços numa tentativa falha de encontrar sua mão no outro lado da cama, mas está vazio. O minuto passa mais lento, como se a minha vida estivesse em câmera lenta. Vejo uma luz forte vindo de um canto, tem você chegando e vindo me abraçar com a rosa branca na mão e a aliança no dedo. Você colocou ela de novo, a minha tá aqui no bolso. Coloco a minha também e você se deita do meu lado. Tento me levantar dizendo para que corra, que não fique aqui comigo, a fumaça faz com que a rosa murche e seus olhos não abrem mais. Abro os olhos. Não tem você, não tem a rosa murcha, mas ao longe tem uma luz pequena vindo. É a morte? Os gritos voltam, o choro também, o meu. Choro por não ter te mostrado que a aliança tava aqui no meu bolso a noite toda, colocaria depois da rosa, para simbolizar a nossa volta. Choro porque já não vejo nada, a luz se apagou e meus olhos já não querem ver. Choro porque já não vou conseguir sair, minhas pernas se recusam a partir. Choro porque sei que vou morrer e não terei tido tempo de te ver vestida de noiva, ou me ajudando a pintar as paredes do quarto do bebê. Choro engasgado com um eu te amo que digito agora para você numa mensagem rápida de adeus.


Uma das vítimas do incêndio de Santa Maria-RS sabia que não conseguiria sair da boate e mandou uma mensagem pra sua namorada que dizia: “Não vou conseguir sair, te amo.”

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